
A VOLTA A TODO UM MUNDO EM 80 DIAS
O famoso livro de Júlio Verne que evoco no título deste texto não podia ser mais adequado para descrever o que tem sido o processo participativo da revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) de Gaia. Durante pouco mais de 80 dias, o município de Gaia e a Gaiurb realizaram um conjunto de 24 sessões públicas, com o apoio da Universidade de Aveiro, para auscultar os cidadãos sobre o território de cada uma das freguesias, numa viagem que arrancou a 15 de janeiro em Arcozelo e terminou a 9 de abril em Vilar do Paraíso.
As reuniões decorreram às quartas e sextas à noite, em formato digital, e juntaram, em média, mais de 50 cidadãos, tendo havido sessões onde se chegou aos 120. Logo após o momento de boas-vindas feito pelo Presidente da Câmara Municipal, os participantes foram divididos em grupos de cerca de dez, num modelo que procura aproximar-se de uma conversa à volta da mesa, onde todos têm tempo para falar e escutar. Apesar das barreiras da tecnologia, o ambiente dos encontros foi de grande proximidade, e isso explica que as três horas da sessão passassem num instante.
Num município com mais de 300.000 habitantes, muitos deles recentes e, por isso, com entendimentos distintos do “sentido de pertença”, pretendia-se que este exercício colaborativo sobre o futuro fosse também uma oportunidade de criar ou restabelecer laços. Neste sentido, a primeira parte da reunião destinava-se à partilha de memórias coletivas, histórias contadas a várias vozes, que narram vivências ocorridas ao longo do tempo. Depois desse momento, seguia-se um diagnóstico colaborativo de recursos e problemas e por fim os participantes sugeriam um conjunto de recomendações. Os encontros terminaram com um resumo do trabalho realizado por cada grupo, feito por porta-vozes cidadãos escolhidos pelos participantes.
Visita a lugares mágicos na voz dos fregueses
Nas viagens pelas memórias coletivas de Gaia realizadas, foi revelado o território pela voz dos seus protagonistas, os residentes, membros das coletividades e responsáveis das freguesias. Tal como no livro de Verne, também o grupo visitou lugares mágicos que, sem a arte do escritor, seguidamente se apresentam.
Numa primeira viagem pelo presente, os participantes foram até Arcozelo (15/1) e, em dia de derby Porto-Benfica, começaram por ‘vestir a camisola da participação’, tendo posteriormente seguido até Avintes (20/1) onde, nestes tempos difíceis de confinamento, se ‘talhou o argumento de interação social e de participação cívica’. No caminho de volta, parou-se em Canelas (22/1) para escutar “um belo concerto cívico no coreto digital” e a viagem terminou em Canidelo (27/1) sentados “num tear coletivo a tecer as malhas do futuro”.
Depois, com o grupo sempre a crescer, viajou-se no tempo em direção ao passado e na Madalena (12/2) e começou-se à procura de histórias escondidas dos muitos “heróis do quotidiano”. Passeou-se pela “A rua das coletividades” de Perosinho (3/3) e foi-se petiscar à “A mercearia da minha aldeia” em Sandim (5/3). Nesta viagem emocionante, navegou-se pelo Douro a partir de Crestuma (29/1) “no barco de Guida Baeta em busca da travessia para a margem chamada futuro” e houve tempo para dar um salto até à “A Festa da Saudade” em Lever (10/2). Nestas Terras de Gaia, há uma longa tradição de “estimular o bairrismo saudável», como se viu em Grijó (3/2), e de “Redescobrir o sentido de vizinhança” tão bem celebrado em São Pedro da Afurada (17/3).
Estações imaginárias no caminho trilhado
O futuro desejado para este território alargado a que chamamos cidade é um destino longínquo onde não sabemos quando e onde chegaremos. Por isso, temos feito caminho, caminhando, descobrindo, a cada semana, paragens inspiradoras. Das conversas, emergiram “estações imaginárias” com referências do devir - a “Cidade campo pós pandemia” em Gulpilhares (5/2), a “Cidade amiga das famílias” em Pedroso (26/2) ou da “Cidade de 15 minutos” em Mafamude (17/2). Sabe-se o quão difícil é aceder a estas geografias do imaginário pelo que o grupo construiu uma rede de “ruas e avenidas” que poderão ajudar a encontrá-los - “A importância do(s) centro(s)” em Olival (19/2), a “Nova vida para o centro antigo” em Santa Marinha (10/3), as “Boas-vindas aos novos residentes” em Oliveira do Douro (24/2), o “Futuro construído com soluções baseadas na natureza” em São Félix da Marinha (12/3).
Mais de mil partilhas dos participantes
Não se trata de uma corrida contra o tempo, pois o processo participativo não terminou em abril. Ainda teremos momentos onde iremos organizar um conjunto de ações experimentais com os proponentes que irão permitir testar e afinar algumas das propostas cidadãs. As referências e as datas que deixo no texto são os retratos das partilhas dos mais de 1.000 cidadãos feitas nas reuniões realizadas. São um património de conhecimento muito valioso que o município de Gaia e a Gaiurb certamente saberão transformar em propostas de ação coletiva a integrar no PDM e noutros instrumentos de política pública municipal. Este é um enorme desafio que mobiliza o melhor de cada um de nós. Contamos convosco para as próximas iniciativas.
* Investigador da Universidade de Aveiro e coordenador das sessões online do PDM de Gaia