VANESSA FERNANDES: "TIVE DE ME RESGATAR"
Vanessa Fernandes, atleta portuguesa de triatlo, ganhou várias medalhas durante a sua carreira, entre elas, a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 2008. A atleta conta-nos um pouco do seu percurso, quer pessoal, quer desportista, e como é que o desporto mudou a perspetiva em relação a si mesma. A primeira pergunta que se impõe a um desportista terá, inevitavelmente, de ser:
Como surgiu o gosto pelo desporto?
Ganhei o bichinho pelo desporto porque cresci numa casa de desportistas e, então, todo esse movimento acontecia ali, em minha casa, primeiro e, depois, também, dentro de mim. Via o meu pai a fazer desporto e o pai é sempre o pai, é sempre a direção, é aquilo que se vê, é o caminho… significa muito…
A preparação para os Jogos Olímpicos influenciou a sua saúde mental?
Eu defini um caminho para a minha vida, em 2004, quando fui aos meus primeiros Jogos Olímpicos, que era conseguir um pódio em 2008. A partir daí, as coisas começaram a tornar-se um pouco mais sérias para mim, ou seja, tudo aquilo que me dissessem que, para mim, me fosse dar mais rendimento, mais estrutura e que eu ficasse mais forte e melhor, eu fazia, mas eu fazia de uma forma muito intensa, como se os jogos olímpicos e o resultado fossem a coisa mais importante da minha vida. O trabalho desde as cinco e meia da manhã até à hora de deitar, até às nove, dez da noite, tudo tinha de ser perfeito, desde o treino, desde a alimentação, desde o descanso, desde o sair ou não sair, desde as pessoas, desde os amigos… tudo isso era a coisa mais importante do mundo para mim. Acabei por colocar muita pressão em mim, visto que não podia falhar, não podia dizer que estava cansada, não podia dizer “hoje não consigo fazer esta prova porque é muito para mim”, pois dizer isso era como se eu estivesse a falhar e a tornar visível aos outros que eu não estava preparada ou que não estava bem e, assim, sentia que tinha de aguentar e ir buscar recursos para continuar até lá, até ao objetivo principal. À volta, na “vida normal”, ir a um concerto ou a uma galeria de arte ou estar apenas a desenhar ou ir até à natureza e estar a apreciá-la, não fazia sentido.
Assim, essas coisas passam a ser esquecidas e ficam fora do teu campo de visão e da tua vida e apenas ficas ali naquele mundinho de exigência, de sacrifício, de autopunição, de te meteres numa pressão intensa e nem sequer te dás ao luxo de respirares e descansares com outras variantes que existem na vida para continuares, porque tudo isso poderia afetar o meu rendimento. Quando essa pressão começa a ser tão desgastante e tão grande, há estruturas internas que começam a ser muito difíceis de aguentar, principalmente o emocional, que passou a ser completamente esquecido e acabei por não saber lidar com as emoções e com aquilo que se passava dentro de mim. Quando eu começo a reprimir uma emoção e algo que eu quero fazer e não faço, acaba por ser muito doloroso para mim e isso depois faz com que eu tenha que obter outras coisas que sejam fugas, de modo a libertar --me e de modo a ter um certo prazer nos meus dias. No meu caso, onde fui buscar esse meu refúgio, essa fuga, foi na bulimia. Foi com a comida, depois foi com outro tipo de formas fugazes, em que eu fosse acreditar que ali ia buscar algum prazer, para eu continuar a minha preparação e os meus dias e, assim, deste o teu corpo, deste a tua parte mais feminina, deste a tua beleza e deixaste de olhar para ti e de cuidares de ti…
Como é o acordar de uma atleta já medalhada?
De certa forma, senti-me confusa… não é bem confusa, eu estava à espera que ao obter a medalha de prata, realmente me fosse sentir muito feliz, que a minha vida fosse mudar, mas não foi isso que aconteceu. Claro que foi algo extraordinário, porque realizei um objetivo, ganhei uma medalha olímpica para Portugal, uma medalha que irá ficar registada na história. Só que, em mim, tudo ficou igual, eu fiquei igual, as minhas emoções continuaram as mesmas. Como é que uma atleta olímpica medalhada perde o interesse em competir? O desporto fazia-me mais mal do que bem, esgotava-me completamente e já não fazia sentido estar a competir nem a entrar numa esfera que é tão rigorosa, não era aquilo que eu queria.
Como surgiram os distúrbios alimentares, foram uma causa ou um efeito do sucesso?
Cheguei a um ponto em que tudo se tornou tão vicioso e tão negro que acabou por tomar conta de mim, desde que acordava até quando me ia deitar. Acordava e ia treinar, mas ia treinar porque sabia que a seguir ia ter aquele momento em que teria a comida toda que quisesse, para comer sem culpas, e andava assim 24h, até que se chega a um ponto em que já não se aguenta mais este estado, esta compulsão interna, e acabei por me isolar cada vez mais. Perdi amigos, perdi pessoas, não fui a sítios, fiquei só ali no meu mundo, numa solidão, numa depressão e não conseguia sair dali porque acabava por acreditar que aquilo era a minha felicidade e o meu prazer.
Como emergir de um “mergulho” tão profundo?
Um dia terás de saber lidar com as coisas mais simples da vida e começares a mergulhar nas tuas emoções, começares a tomar conta do teu corpo e a arrancar completamente com tudo aquilo que te ensinaram até hoje, com tudo aquilo que acreditaste até hoje, com tudo aquilo que tu pensavas que eras até hoje, é deitar fora, ou seja, é um início de vida. É muito difícil voltar a acreditar numa vida boa, numa vida “normal”, com amor, simplicidade, nutrição sem estares a massacrar-te tanto e, aí, é que começa o grande trabalho. E esse trabalho tenho sido eu a fazer, muito comigo mesma, tem sido uma descoberta dos dias e tem sido ligar-me a outras possibilidades de conexão ao meu interior, e esse é um mundo de descoberta e de exploração.
Conseguiu recuperar o prazer pelo desporto?
É assim, eu neste momento não estou a fazer desporto, porque o que me dá prazer é estar comigo mesma. A minha maior dificuldade era ter prazer em estar comigo, sentir-me feliz na minha pele. Tudo à minha volta parecia melhor do que eu, perdi completamente o amor próprio, a autoestima, sentia-me incapaz de fazer alguma coisa. Tive de me resgatar! Agora, ter prazer pelo triatlo não é de todo o meu foco e não é de todo o que eu ando à procura neste momento. Houve acompanhamento psicológico ao longo da sua carreira? Houve uma fase em que andei em psicólogos, mas não consegui recuperar. Tentaram devolver-me ao desporto de alta competição, quando o que eu precisava era de estar comigo própria. Gostei quando o psicólogo foi honesto e me disse: “Deixa completamente o triatlo, deixa completamente aquilo que estás a fazer, não faz sentido nenhum porque o importante neste momento és tu”. Às vezes, sentia que os psicólogos não tinham essa frontalidade comigo, tinham antes o intuito de me fazerem voltar a acreditar em algo de que eu já estava completamente cansada. Quando o que eu procurava era alguém que me dissesse: “Olha, tu estás aqui no desporto, mas se essa não é a tua cena, sai daqui! Estás numa mentira completa, estás a forçar completamente uma coisa que não é a tua essência.” Muitas vezes, somos induzidos a acreditar numa coisa que não somos e depois vamos forçando essa parte. Mas, no final, foram uma ajuda, deram-me estruturas e fizeram com que eu própria também me soubesse ver a mim mesma e soubesse escolher por onde é que eu gostava de fazer o meu próprio processo.
Muitos consideram a pressão como um privilégio. Como é que a Vanessa a interpretou?
Agora sei que tenho de criar a minha própria forma de atingir o meu objetivo sem ter de criar pressão. Ninguém precisa de ter pressão. Agora, o meu momento e o meu crescimento para o quer que seja, quer queira ser uma grande psicóloga ou bailarina, é saber levar de forma que não me machuque, que não me faça mal. Se aquela pessoa está bem a atingir aquele objetivo em cinco dias e eu não, então, não tenho o mesmo caminho que aquela pessoa.
ENTREVISTA PUBLICADA NO JORNAL ESCOLAR DO COLÉGIO INTERNATO CLARET, INTEGRADO NO PROJETO MELHOR ESCOLA 2022